O FIM DO LIVRO E A ETERNIDADE DA LITERATURA
Carlos Heitor Cony – FSP 08/09/2000
Já está chegando a discussão sobre o futuro do livro, tal como hoje o conhecemos. Por extensão, a mídia impressa sofre a mesma ameaça vinda da mídia eletrônica, que ainda está na sua pré-história.
Antes de mais nada, é preciso lembrar que o livro teve ancestrais em nada parecidos com o produto industrial que tomou sua forma definitiva após Gutenberg. O homem escreveu seus primeiros códigos morais e sociais em pedra, tijolos e madeira. Os dez mandamentos do Sinai, vieram em forma de tábuas, embora Michelangelo tenha eternizado o seu Moisés segurando pedras. A escrita primitiva, feita a estilete, era da direita para a esquerda, daí que a literatura mais antiga, como a hebraica, é lida ao contrário. Os gravadores usavam a mão direita para dar a martelada, e o estilete ia da direita para a esquerda.
Povo do livro, os judeus têm como símbolo supremo de sua religião o Livro, a Torá, que são de pergaminho ou papiro. Em Jerusalém, no Palácio di Livro, está exposto o Livro de Isaías, tal como foi encontrado numa das cavernas de Qumran. É um imenso rolo que se desdobra à medida que lê.
Antes mesmo de Gutenberg, o livro já adquiria o formato atual, e foi nele que se conservou a cultura e a tradição material e espiritual da humanidade. Pergunta: o que será dele quando, a tecnologia conseguir telas de computador com a espessura de uma folha de papel? Poderemos dispensar nossas bibliotecas, conservando um único exemplar na forma aproximada de um livro tal como o conhecemos, podendo levá-lo para a cama, a praia, o banheiro, bastando acessá-lo por um provedor, que nos dará o texto integral de qualquer obra, no idioma que escolhermos, com as ilustrações e gráfico de que necessitamos. No mesmo “livro”, poderemos ler “Guerra e Paz” e “Os Sertões”. Ou por meio de disquetes ou pela internet. Como se vê, um problema técnico, cuja materialidade estará sempre em processo.
Mas a pergunta que importa não é sobre o futuro material do livro, que depende de papel, gráfica, tinta e acabamento. O que importa discutir é que a linguagem habitual do livro, a literária, feita de letras, sintaxe e morfologia, ganhou uma inesperada importância com o advento da linguagem digital.
Pois a verdade é que a linguagem visual, da imagem que se move, que tem cor e movimento, tem som e pode até ter cheiro, começava a dominar a cultura moderna. Jovens na fase dos 18 aos 30 anos já resistiam à linguagem de letras, uma vez que foram educados a partir de imagens e ícones que, com simplicidade e eficiência, transmitiam informações mais completas e instantâneas.
Acontece que com a linguagem digital colocada em circuito pela rede eletrônica, os jovens de agora estão chegando à fase de consumo de informações, por bem ou por mal, estão voltando à expressão literária, rudimentar embora, mas sujeita ao aprimoramento natural determinado com a própria necessidade de se exprimir.
Não faz muito, um jovem normal, independente de sua escolaridade, possuía um vocabulário padrão paupérrimo, reduzido ao mínimo, ao “morou”, ao “cara” e a outras simplificações que, de certo modo, eram bastantes para a comunicação entre os iguais. Com a chegada dos e-mails, dos sites virtuais, essas necessidades aumentaram e, embora continuem a ser usados símbolos, ícones e imagens, nota-se que a palavra impressa literariamente é indispensável. Daí a sobrevivência da linguagem propriamente dita, em sua forma convencional, que não será vencida pela linguagem meramente visual e animada.
É impossível deter a geléia que isso começa a provocar na cabeça dos meninos de 10 e 12 anos, que sentem necessidade cada vez maior da comunicação impressa. Aos poucos, eles estão descobrindo o universo literário em sua acepção mais clássica, precisam lidar com sujeitos e complementos, dar valor a determinadas palavras, juntá-las de forma articulada e pessoal. Ou seja: o retorno à literatura. E, gradualmente, esse universo irá se ampliando. É impressionante o número de e-mails que recebemos de jovens, na fase de 14 e 15 anos, divagando sobre temas variados, e muito deles insensivelmente, apelando para pequenos contos ou crônicas, recurso impensável antes Dan internet, pois só era usado em salas de aula e ajudavam formar o desdém pela linguagem literária impressa.
Discutir a sobrevivência do livro, como objeto material, é ocioso. Como produto industrial, ele estará sujeito às transformações da técnica e da circunstância. Agora, o espírito da letra, a necessidade da letra como símbolo de expressão, reflexão e comunicação, isso nada tem a tirar da linguagem digital. Pelo contrário: ela ajudou a velha letra, que n ossos ancestrais grafaram na pedra ou na madeira, a vencer a força e a comodidade da imagem.